A Fraternidade é Vermelha
- Comportamento
- 25/08/2021
- 20 min
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Na trama, Valentine é uma modelo que mora em Genebra, e atropela uma cadela, de nome Rita. Após prestar socorro e de posse do endereço afixado na coleira, ela devolve a cadela ao dono, um juiz aposentado que, mostrando-se indiferente com a devolução do animal, possuía uma central de escuta telefônica em sua casa, onde captava ilegalmente as conversas dos vizinhos.
Horrorizada com aquilo, Valentine repreende moralmente o juiz, momento em que ele responde que ali, naquele universo clandestino, finalmente ele sabia o que era a verdade: de que um vizinho bem-sucedido era um traficante, da falta de sinceridade entre dois amantes, da infidelidade de um marido e pai de família, das carências afetivas de uma mãe negligenciada pela filha. Naquele ambiente subterrâneo, anônimo, sombrio e criminoso, ele encontrava as pessoas tais como elas eram e obtinha a certeza que nunca tivera em nenhum processo por ele julgado.
Atraída pela situação inusitada, Valentine retorna à casa do juiz alguns dias depois e, num determinado momento da conversa, ele faz uma das perguntas morais mais importantes, e que revela o real sentido da fraternidade:
– “Por que você recolheu Rita (a cadela) na estrada?”, e ela responde:
– “Porque a atropelei. Estava ferida e sangrava.” Sabendo que isso não era verdade, o juiz aposentado retruca:
– “Se a tivesse deixado, ficaria com remorso. Certamente um cão sem cabeça iria aparecer em seus sonhos com a cabeça esmagada. Mesmo assim, por que o fez?”.
E Valentine não sabe o que dizer. Não é por menos. Em se tratando de alteridade, essa pergunta é essencial: por que você faz o que faz? Em outras palavras, quais foram os reais motivos para você agir em prol do outro? Foi efetivamente para o outro ou para você mesmo? E a resposta é geralmente complexa, pois envolve inúmeras variáveis evolutivas, psicológicas, morais, afetivas e certo grau de autoconhecimento.
Dentre as possíveis interpretações desse diálogo, o que o juiz aposentado queria mostrar à Valentine era que a sua ação, apesar de trazer bem-estar para a cadela, visava ao benefício da própria Valentine, e que ela não era tão boa como imaginava: salvara a cadela, não por causa da cadela em si, mas para não ficar com o peso na consciência por não ter feito nada. Ela era tão repreensível quanto o juiz e, por isso, tão incapaz de realizar condenações morais.
Isso vai no problema central da alteridade. Em nosso mundo de relações, posso considerar o outro como minha extensão, um prolongamento de minha personalidade, um meio no qual projeto a mim mesmo. É por isso que a crítica ou o elogio alheio são tão importantes para alguns, pois veem a si mesmos no comportamento do outro. Ou, posso tratar o outro como um fim em si mesmo, como alguém por inteiro que, independente de mim, tem liberdade para agir, pensar e sentir. Voltando ao filme, a cadela Rita foi apenas um meio para que Valentine se acreditasse alguém moralmente superior e nobre, quando, na verdade, Valentine socorria a si mesma, garantindo-se o sono dos justos, sem o perigo de ter pesadelos com uma cadela sem cabeça.
Logo, a alteridade nos traz um dilema: até que ponto a minha ação junto ao próximo é para satisfazer, implicita ou explicitamente, os meus próprios interesses? Até que ponto o outro é só um meio para que eu possa me projetar narcisisticamente sobre ele?
Essas reflexões são fundamentais para doutrinas cuja moral perpassa necessariamente pelo outro, como a de Jesus e a espírita. Todas as virtudes cristãs e espíritas são aquelas que só desabrocham no contato com o outro. Só descubro efetivamente o que é amor, humildade, abnegação, perdão, justiça, caridade, etc., quando inserido em certas relações com meus semelhantes, seja os mais próximos, seja num contexto mais geral.
Entre os mais próximos, o escritor Franz Kafka nos traz um exemplo bem significativo, ao dizer, em seus diários, que os pais que esperam ou exigem gratidão dos filhos são como agiotas que arriscam o seu capital desde que recebam juros por ele. Excessivo ou não, Kafka quer dizer que, nesse caso, os pais tratam os filhos como projeções: o carinho e o afeto dados agora são, no fundo, a garantia de recebê-los depois. E a pergunta é: os pais continuariam a dar o mesmo carinho e afeto se soubessem que os filhos seriam um tanto negligentes com eles no futuro? O mesmo vale entre filhos e pais, casais, amigos, etc. Não que esperar gratidão seja errado. O problema é esperar como uma forma de cobrança velada ou mesmo imposição.
No contexto mais geral, todos os regimes políticos que tolhem a autodeterminação ou impedem que os cidadãos decidam sobre temas que lhes afetam tratam-nos como projeções, como meio para que um pequeno grupo – a elite política e econômica –, fale e escolha em nome de todos, como na democracia representativa e seus processos de dominação econômica e ideológica.
Disso tudo, resta clara a necessidade de compreendermos melhor a alteridade enquanto exercício contínuo de autoconhecimento e de empatia, de desenvolvermos a capacidade de nos colocarmos no lugar das pessoas, sejam elas vítimas ou algozes. Isso não significa coadunar-se com o mal, nem aceitar imposições e humilhações, especialmente nas relações de forte apelo moral e sentimental. Significa saber que, se colocados nas mesmas condições, talvez teríamos sido menos complacentes do que a vítima ou mais cruéis do que o algoz. Significa, no fundo, encontrar a nós e ao outro desnudos, tal qual somos, com todas as nossas qualidades e defeitos, com todo o nosso universo afetivo, moral, intelectual e evolutivo.
Portanto, o sentido real da fraternidade – de uma sociedade formada por irmãos – passa por um entendimento profundo da alteridade, reconhecendo o outro como um fim em si mesmo, como alguém que deve ser compreendido em suas experiências evolutivas, alguém que, como eu, é capaz do melhor ou do pior, e não apenas como um espelho para meus deleites narcisísticos.
Esse entendimento profundo da alteridade é necessário e fundamental para uma sociedade regenerada, por mais que ainda nos traga dilemas existenciais e incômodos morais.
Raphael Faé (editor do Jornal Crítica Espirita)
Originally posted 2018-02-19 06:00:36.