Ceticismo, Espiritismo e Caridades
- Doutrina Espirita
- 16/06/2021
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Por Marcio Sales Saraiva
Já ouvi espíritas dizendo que “o espiritismo esclarece de onde viemos, porque estamos aqui neste mundo e para onde vamos”, ou seja, o espiritismo explica tudo e, nesse sentido, satisfaz a grande obsessão da modernidade iluminista de dizimar o Mistério, iluminar todas as áreas escuras do conhecimento humano e fazer emergir a verdade inquestionável sobre todas as coisas. Mas será que é isso mesmo o espiritismo?
O ceticismo é o ponto inicial de toda a pesquisa feita pelo professor Denizard Rivail, ou seja, Kardec sempre parte da dúvida para consolidar alguns pontos que serão considerados provisoriamente verdadeiros até que surjam elementos que possam deslocá-lo do status de verdade. A verdade em Kardec é progressiva, aberta e não um dogma.
Foi assim, por exemplo, quando Kardec começou a investigar os fenômenos das mesas girantes. Ele observou, meditou, questionou. Manteve-se em contato com os médiuns e os espíritos comunicantes, mas sem fanatismo, sem devoção, passando tudo pela dúvida e pelo crivo da razoabilidade, e, se fosse preciso, não temia eliminar comunicações que não apresentavam coerência e/ou qualidade de conteúdo.
O ceticismo nos diz que o conhecimento absoluto do real é impossível para a razão humana, portanto, devemos renunciar às certezas dogmáticas, suspender os juízos apressados sobre as coisas e submeter todas as afirmações, doutrinas e convicções ao crivo da dúvida. Aliás, o que é real para um pesquisador não o é para outro, ainda que o objeto de pesquisa seja o mesmo.
Esta concepção filosófica surgiu na Grécia Antiga com Pirro de Élis (século III a. C.) — é por isso que céticos são também chamados de pirrônicos — e ganhou diversas tonalidades ao longo dos séculos. Sua versão mais radical, encontra-se no sábio Sexto Empírico que afirmava a impossibilidade de qualquer tipo de certeza ou verdade, contrariando assim o ceticismo pirrônico que, mesmo reconhecendo a incerteza e a dúvida, continuava em busca da verdade ou de alguma certeza possível. O pensamento kardequiano estaria mais próximo desse ceticismo moderado.
Existem três etapas investigativas no ceticismo filosófico: epoche (suspensão do juízo, dúvida), zétesis (busca incessante de certeza) e ataraxia (serenidade que surge do conhecimento de que a certeza sobre as coisas é impossível). O espiritismo de Allan Kardec tem elementos da epoche que nos conduz a uma zétesis — uma busca pelo que é possivelmente verdadeiro.
Por outro lado, existe também o ceticismo fideísta, aquele que diante da incapacidade da razão humana em atingir a verdade/certeza, entrega-se à fé e à revelação como única fonte de verdade. Este tipo poderá cair em irracionalismo violento e perigoso para a convivência social, tais como os fundamentalismos religiosos e a extrema-direita religiosa. E muitos espíritas, atualmente, mergulharam de cabeça nesse fideísmo, idolatrando médiuns e abrindo mão de qualquer crítica hermenêutica das mensagens dos espíritos.
É inegável. O ceticismo está na origem do pensamento filosófico, pois não é possível filosofar sem dúvidas. É esta velha corrente filosófica – de Pirro de Élida e Sexto Empírico até Bertrand Russell, passando por Montaigne, Descartes e Pascal – que também irá inspirar uma parcela significativa das obras literárias.
A dúvida, portanto, é o motor da filosofia e também das pesquisas cientificas. Ela é a base através da qual Denizard Rivail irá descobrir-se Allan Kardec. Se o cético é uma pessoa que só acredita em coisas para as quais há fortes evidências e bons argumentos, ser espírita, para Allan Kardec, não é isso?
O espiritismo não é um racionalismo cego e radical, nem pretende explicar tudo ou todas as coisas. Só Deus é “inteligência suprema”, portanto, o espiritismo reconhece os limites da razão humana e o quanto há de numinoso no universo que conhecemos a partir dos nossos insuficientes cinco sentidos. Foi Rudolf Otto que chamou essa consciência do ‘mysterium tremendum’ que nos leva a humilde veneração do numinoso que está na base das experiências religiosas do mundo.
Allan Kardec, em “O livro dos espíritos”, deixa nítido, através dos espíritos comunicantes, que não é possível tudo compreender e que mesmo os espíritos superiores “sabem muito”, mas não sabem tudo:
Questão 10. Pode o homem compreender a natureza íntima de Deus? “Não; faltalhe para isso o sentido.”
“A inferioridade das faculdades do homem não lhe permite compreender a natureza íntima de Deus.” (comentário de Kardec a questão 11)
Questão 78. Os Espíritos tiveram princípio, ou existem, como Deus, de toda a eternidade? “Se não tivessem tido princípio, seriam iguais a Deus, quando, ao invés, são criação sua e se acham submetidos à sua vontade. Deus existe de toda a eternidade, é incontestável. Quanto, porém, ao modo por que nos criou e em que momento o fez, nada sabemos. Podes dizer que não tivemos princípio, se quiseres com isso significar que, sendo eterno, Deus há de ter sempre criado ininterruptamente. Mas, quando e como cada um de nós foi feito, repito-te, nenhum o sabe: aí é que está o mistério.”
Além destas, você ainda poderá investigar as questões 10, 13, 17, 18, 19, 28, 42, 48, 81, 82, 83, 182, 238, 242, 392, 569, 579 e 613. E isso só em “O livro dos espíritos”.
Este conjunto de questões é suficiente para aproximar o espiritismo de Allan Kardec de algumas formulações do ceticismo filosófico, mas também do chamado “pensamento fraco”, no sentido em que o filosofo pós-moderno Gianni Vattimo desenvolveu. Em outras palavras, o espiritismo kardequiano pode ser interpretado não como um “pensamento forte” (dogmático, ambicioso e inquestionavelmente verdadeiro), no estilo das Igrejas do século XIX, mas um pensamento humilde e fraco, que reconhece sua pequenez diante da Divindade e de seus mecanismos insondáveis.
Dizem que a arrogância é prima da vaidade e irmã do egoísmo, portanto, inimigas do espiritismo. Este foi o recado dado por Allan Kardec. A “salvação” não está na posse de uma suposta verdade inquestionável, mas na caridade, que é o amor efetivo.
Marcio Sales Saraiva define-se como “escrevinhador”. Formando em Sociologia e Ciência Política. Mestre em Políticas Públicas pela UERJ. Foi dirigente do Grêmio Espírita Nazareno e colaborador da União Espírita Cristo Rei, do Rio de Janeiro.
Fonte: http://ccepa-opiniao.blogspot.com/