Chico Xavier tinha a Pele do Rinoceronte
- Doutrina Espirita
- 15/10/2019
- 25 min
- 3.257
Nas noites de segunda e sexta-feira, ele colocava o Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, embaixo do braço e ia para o Centro Luiz Gonzaga. Seguia à risca uma instrução ditada por Emmanuel: fidelidade irrestrita a Jesus Cristo e a Kardec, o codificador da doutrina espírita. O guia do outro mundo levava tão a sério este mandamento que um dia chegou a determinar a Chico:
– Se alguma vez eu lhe der um conselho que não esteja de acordo com Jesus e Kardec, fique do lado deles e procure me esquecer.
Chico demorava na cartilha espírita, praticava as lições de caridade, promovia sessões de desobsessão às quartas-feiras, mas o centro ficava cada dia mais vazio. José Hermínio Perácio e a mulher, Carmem, se mudaram para Belo Horizonte – precisavam ficar mais perto da família. José Xavier teve que trabalhar à noite numa oficina de arreios para pagar uma dívida. De repente, o rapaz se viu sozinho no barracão. Quando pensou em sair de fininho, ouviu a voz de Emmanuel.
– Você não pode se afastar.
– Como? Não temos frequentadores.
– E nós? Nós também precisamos ouvir o Evangelho. Além disso, temos aqui vários “desencarnados” que precisam de ajuda. Abra a reunião na hora marcada e não encerre a sessão antes de duas horas de trabalho.
Chico seguiu as instruções. Às oito horas iniciava a reza de abertura da sessão. Em seguida, abria o Evangelho Segundo o Espiritismo ao acaso e comentava o capítulo em voz alta. Nessa época, começou a ver mortos e ouvir vozes com maior frequência e nitidez. Os seres invisíveis ocupavam os bancos vazios.
Do lado de fora, vizinhos e parentes acompanhavam aquele espetáculo absurdo: o rapaz falava sozinho, gesticulava, rezava, duas horas seguidas. Uma das irmãs, uma noite, se pendurou na janela para ouvir o monólogo:
– Tenhamos fé em Jesus, minha irmã.
– Com paciência alcançaremos a paz.
– Sem calma, tudo piora.
A espectadora interrompeu a cena insólita:
– Com quem está conversando?
– Com a dona Chiquinha de Paula.
– Ela já morreu, Chico.
– Você é que pensa. Ela está bem viva.
A família ainda pensava em levar o rapaz a um bom hospício.
O padre Júlio Maria, da cidade mineira de Manhumirim, estava disposto a providenciar uma camisa- de- força para o espírita de Pedro Leopoldo. Todo mês, ele escrevia artigos para o jornal local, O Lutador, e fazia o favor de enviar suas opiniões pelo correio ao autor do Parnaso de Além Túmulo. Em nome de Jesus Cristo, os textos excomungavam o espiritismo, reduziam a pó a reencarnação e à piada o porta-voz dos mortos no Brasil. “Francisco Cândido Xavier deve ter a pele de um rinoceronte para suportar tantos espíritos”, escreveu num dos seus manifestos.
Chico ficou engasgado e precisou da ajuda de Emmanuel para engolir o comentário.
Se você não tem a pele de rinoceronte, precisa ter, porque, se cultivar uma pele muito frágil, cairá sempre alfinetada.
O padre Júlio Maria espetou Chico Xavier durante treze anos. Só parou quando morreu. E, nesse dia, Chico ouviu um vozeirão de seu guia:
Vamos orar pelo nosso irmão Júlio Maria. Com ele sempre tivemos um cooperador maravilhoso. Dava-nos coragem na luta e concitava-nos a trabalhar.
A cada ataque dos céticos, Chico escutava Emmanuel bater sempre na mesma tecla:
– Não te aflijas com os que te atacam. O martelo que atormenta o prego com pancadas o faz mais seguro e mais firme.
O conselheiro invisível esquecia que martelos também entortam pregos.
Chico sentia os golpes e andava pela cidade arqueado, sob o peso da desconfiança alheia.
Em dezembro de 1932, o rapaz fechou os olhos e fincou o lápis no papel. As frases apareceram velozes e nada evangélicas. Eram endereçadas a ele mesmo.
“Meu amigo,
Há um decênio que não me preocupo com as parvoíces da Terra. Nem presumia a possibilidade de enviar novamente para aí a minha futilíssima correspondência, quando alguém me insinuou a ideia de vir ditar-te minhas sandices.
Acometeu-me o desejo incoercível de atirar um dos meus petardos de troça no gênero bípede e estalar uma boa gargalhada, sonora e sã.
Foi o que fiz. Tentei a prova.
Focalizei no meu pensamento a ideia de vir ter contigo e bastou isso para que as minhas raras faculdades de fantasma me conduzisse a esse maravilhoso recanto sertanejo em que vives, esplendor de canto agreste, quase selvagem…Busquei aproximar-me da sua individualidade.
Vi-te finalmente. Lá surgias ao fim de uma rua bem cuidada, onde se alinhavam casas brancas e arejadas, brasileiríssimas, abarrotadas de ar, de saúde, de sol; vinhas com o passo cansado, pele suarenta a derrete-se dentro de roupas quase ensebadas, como os pés metidos em legítimos socos do Porto, obrigando-me a evocar o cais de Lisboa.
Sem que pudesses observar-me, submeti-te a demorado exame.
Procurei a tua bagagem de pensamento, encontrando tua mocidade tudo quanto a tristeza criou de mais sombrio; em tua alma amargurada, vi apenas porções de sofrimentos, pedaços de angústia esterilizadora, recordações tristonhas, lágrimas cristalizadas…Vi-te e ri-me. Ri-me da estultice do cérebro desequilibrado do asno humano, com o volumoso e pesado arquivo de baboseiras.
(Cansado das lamúrias de Chico Xavier, o remetente da carta recomendava o bom humor como armaJ)
Convence-te de que se comete um ato desarrazoado, uma inqualificável imprudência, em chorar totalmente, em derreter-se inutilmente. Abandona essa exótica preocupação aos mais parvos do que tu. Ri-se o mundo de nós? Riamo-nos dele. Achincalhemos os seus arremedos aos gorilas, ridicularizemos as suas instituições, onde predominam a bandalheira, os seus pulos de cabra-cega; traduzamos a admiração que tudo isso nos desperta com o riso bom, que sempre apavorou os tímidos e insuficientes.”
O recado tinha a assinatura de Eça de Queiroz. O escritor português, autor de “pecados” como O Crime do Padre Amaro, dava mostras não só de sarcasmo como também de boas doses de informação sobre a polêmica em torno de Parnaso do Além-Túmulo.
Após listar a série de teorias usadas pelos críticos para decifrar o enigma Chico Xavier- consciência, mediunidade, psicopatia, loucura, anormalidade, fenômeno, estupidez, espiritomania – o autor invisível não resistiu e levou à boa e velha ironia: ” Vai continuando até que te receitem a enxovia ou o manicômio. No cárcere ou no sanatório, alcançaras um período de repouso. Não te apavores.”
Chico ficou atento às lições e passou a exercitar tanto o bom humor com a humildade ao longo dos anos.
Extraídos das páginas n° 53 a 57 do livro As Vidas de Chico Xavier, SOUTO Maior Marcel, Editora Pensamento, 2ª Edição revisada e comentada.
Originally posted 2016-01-08 08:05:52.