Éticos ou Estéticos?

Quando estava no sexto período do curso de comunicação social, eu e toda a turma fomos apresentados a uma disciplina chamada ética. De aula em aula, fomos entendendo o seu significado – conjunto de valores morais de um grupo – e como era importante publicitários, jornalistas, relações públicas e radialistas atuarem para nunca desrespeitar os preceitos éticos tanto da profissão, quanto da sociedade. Deveríamos, por meio de nossa atuação na área, buscar melhores formas de vivermos e convivermos, fosse na esfera privada ou pública.

A palavra ética vem do grego “ethos”, que significa caráter, disposição, costume ou hábito. Os valores que pautam nosso cotidiano e nos instruem a agir de forma íntegra, honrando a profissão que escolhemos e também as pessoas que irão se servir dela. Por meio da ética, aprendemos que os valores materiais, por exemplo, não devem ser colocados acima dos valores morais. Não dá para, no caso de um jornalista, propagar uma falsa notícia só para agradar a interesses escusos de grupos idem. Não à toa, toda profissão tem seu código de ética. É para sempre lembramos que nossas ações e reações no dia a dia das redações, consultórios, escritórios, fóruns, oficinas e afins devem estar condizentes com o que aprendemos nos bancos escolares.

Toda vez que penso sobre ética, me vem à mente a questão da conduta de um cristão. A meu ver, não dá para se dizer católico, espírita, evangélico etc. e agir em total discordância com os preceitos de amor e respeito que as correntes religiosas pregam. É como se os livros sagrados fossem ordenamentos éticos. No caso do Novo Testamento, tenho certeza disso. Jesus deixou um vasto código de conduta para que saibamos agir com o próximo de forma justa, carinhosa e respeitosa, sem jamais desmerecer ou prejudicar quem quer que seja. É a ética do amor.

Teço essas considerações porque, infelizmente, o que temos visto no país, principalmente de 2016 para cá, é uma enxurrada de gente que se diz cristã indo na contramão dos preceitos que dizem abraçar. E como sou espírita, me espanta ver isso acontecendo entre nós. A doutrina espírita é pródiga em bater na tecla da justiça social. As leis morais contidas em “O Livro dos Espíritos”, primeira obra organizada e publicada por Allan Kardec, que o digam. Isso sem falar na lei de causa e efeito, no amor ao próximo à luz da imortalidade da alma, nas consequências (boas ou ruins) que nos aguardam depois da morte do corpo físico e em futuras encarnações, na progressão dos mundos etc. No entanto, a quantidade de espíritas apoiando pautas reacionárias e políticos que as defendem é assustadora.

Às vésperas das eleições de 2018, assisti, nas redes sociais, ao seguinte vídeo: um padre de uma cidade de Pernambuco pregava aos fieis, à porta da igreja, logo após o término de uma procissão. Dizia ele que de nada adiantava carregar andor, caminhar de terço ou vela acesa em punho e, findo o ritual, apoiar e votar em políticos que pregam o armamento da população, o extermínio de oponentes e que têm comportamento misógino, racista, homofóbico… O clérigo, então, arrematou: “Isso é hipocrisia! Isso é rasgar o Evangelho!”

Eduardo Pinheiro, professor de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é também sacerdote budista. Como tal, é conhecido como Padma Dorje. E é com esse nome que ele assina um brilhante artigo intitulado “Budista de direita é fajuto”. Nele, Dorje faz um breve histórico do budismo, religião que veio do Oriente e ganhou muitos adeptos no Ocidente. No Brasil, segundo ele – devido a um conhecimento raso das origens históricas dos conceitos de esquerda e direita – , é comum encontrarmos pessoas que se dizem budistas só porque meditam. No entanto, defendem os valores da direita, algo totalmente em desacordo com o budismo, que prega a espiritualização do ser, a justiça social e o amor ao próximo e a todas as criaturas. Por isso, afirma o Padma, não dá para ser budista e incentivar a competição e o individualismo; achar que consumo e projeção social trazem felicidade; ser indiferente à questão ambiental; achar normal que haja exploração de mão de obra e desigualdade social… Ele, então, observa que, no Brasil, há muitos budistas da boca pra fora. São budistas não por uma questão ética, mas estética.

Trata-se de uma declaração que vale para os profitentes de qualquer religião, inclusive para nós. Somos espíritas por uma questão ética ou estética? Estudamos as obras de Allan Kardec e afins e frequentamos o centro espírita por quê? Enxergamos nos pressupostos espíritas poderosos instrumentos de aprimoramento pessoal e coletivo? Ou estamos nas casas espíritas apenas para fazer o social, arranjar um amor, promover o próprio negócio, garantir proteção ou obter favores espirituais?

Em várias passagens do Novo Testamento, Jesus chama atenção para a necessidade de sermos éticos, ou seja, agirmos de forma coerente com o que acreditamos e pregamos. Em Mateus, 6:24, o Mestre salienta que não devemos servir a Deus e a Mamon, termo utilizado para descrever riqueza e cobiça. Não há como servir a Deus e, ao mesmo tempo, ser escravo do consumo, achar que racismo é vitimização ou defender os interesses do mercado financeiro em detrimento do povo. Também no evangelho de Mateus, mas em 5:37, o Cristo ressalta que nosso falar tem de ser sim, sim; não, não, isto é, não dá para pregar uma coisa e fazer outra.

Isso me faz rememorar o seguinte episódio: um trabalhador de um centro espírita da cidade do Rio de Janeiro foi afastado da função de doutrinador em reunião mediúnica. Motivo: ele dizia a plenos pulmões, dentro e fora do centro espírita, que bandido bom era bandido morto. Como pode ele ter condição moral para amparar e esclarecer um espírito de alguém que morreu porque tombou na marginalidade? Sem chance. Por isso, foi retirado da função. Já em outro centro espírita do RJ, ocorreu o seguinte: antes de começar o ensaio do coral da instituição, uma senhora, de celular em punho, comemorava, efusivamente, a prisão de um político do qual ela não gostava. Desde quando centros espíritas são locais para celebrar o encarceramento alheio? Em casos como esses, cabem duas perguntas: O que de fato queremos com a doutrina espírita? A quem pensamos que estamos enganando?

Sei que, para alguns, talvez eu esteja parecendo radical. E estou mesmo! A palavra radical vem do latim “radicalis”, que significa relativo à raiz, ou seja, o fundamento, a base que nos mantém de pé. Portanto, para algumas coisas, não há meio termo. É preciso buscar o fundamental, o básico que nos sustenta. Se nossa ética e nosso senso de virtude não são bem alicerçados, não estamos sendo coerentes com o que nossa religião prega. Aí, vem o Evangelho de Lucas 12: 39-48 e adverte que “muito será pedido a quem muito foi dado”. E vem Kardec, na questão 637 de “O Livro dos Espíritos”, dizer que tanto mais culpado é o homem quanto melhor sabe o que faz. Trocando em miúdos, se eu faço escolhas equivocadas e que prejudicam o coletivo, serei bem mais culpado que uma pessoa simplória, sem instrução e desprovida de consciência política que age da mesma forma. A responsabilidade será conforme o grau de esclarecimento.

Infelizmente, estamos vendo muitos espíritas derraparem fragorosamente ao optarem pelo atraso, a anticiência, o conservadorismo, o desamor, a ignorância e o autoritarismo. Uma desconexão total com a Boa Nova trazida por Jesus. Tomara que despertem a tempo!

Nota de esclarecimento: os conceitos de direita e esquerda remontam à época da França de Luiz XIV e sucessores. Do lado esquerdo do rei, ficavam os parlamentares que defendiam os direitos dos menos favorecidos. Do lado direito, os defensores dos banqueiros e aristocratas. Convém ressaltar, todavia, que a direita e a esquerda dos países europeus nem sempre são similares entre si e são bem diferentes do que testemunhamos nas congêneres brasileiras. Ressalto, ainda, que devemos ter cuidado tanto com governos de extrema-direita (saímos de um em 2022) como de extrema-esquerda. Radicalismos nunca são bons. Para mais esclarecimentos, recomendo a leitura do artigo do Padma Dorje. Link a seguir.

Marcelo Teixeira

A opinião do autor não expressa necessariamente a do site. Texto para reflexão.

BIBLIOGRAFIA:

1- DORJE, Padma – Budista de direita é fajuto. Disponível em: https://tzal.org/budista-de-direita-e-fajuto/#:

2 – KARDEC, Allan – O Livro dos Espíritos. 60ª edição, 1984, Federação Espírita Brasileira, Brasília, DF.