Existe Vítima Inocente?
- Doutrina Espirita
- 27/07/2024
- 26 min
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Sim, existe vítima inocente.
É muito comum religiosos afirmarem – inclusive espíritas – que nada acontece por acaso, nada acontece sem a permissão de Deus.
Os crimes hediondos, os assassínios, as perseguições, as traições, as guerras, os acidentes, a violência, as doenças, tudo, absolutamente tudo, Deus já sabia que iria acontecer porque “nada acontece sem a Sua permissão, sem o Seu consentimento”.
Dessa forma, se alguém é assassinado, se um avião caiu por falta de combustível, uma mulher é estuprada etc, é porque “antecedentes espirituais” desabonavam essas pessoas e chegou a hora do resgate: cometeram crimes no passado, agora sofrem as consequências.
Esse “Deus” é mesmo cruel.
Vamos a alguns exemplos de situações ocorridas:
-Terroristas entram numa mesquita na Somália e matam mais de 350 pessoas. Pobre país que vive em estado de guerra e caos desde 1991.
-26 de dezembro de 2004, Sudeste Asiático: Um tremor submarino de magnitude 9,3 – o mais poderoso do últimos 40 anos – frente à ilha indonésia de Sumatra provoca um tsunami que chega às costas de uma dezena de países do Sudeste Asiático, causando a morte de 220 mil pessoas.
-um atirador abriu fogo em uma igreja batista na pequena cidade de Sutherland Springs, no Texas, Estados Unidos, e deixou 26 mortos e 20 feridos.
-Pelo menos 59 pessoas morreram e mais de 500 ficaram feridas após um homem atirar do 32º andar do Mandalay Bay, um famoso cassino e resort de Las Vegas (EUA), contra uma multidão em um festival de música. A ação já é considerada o maior ataque a tiros da história dos Estados Unidos.
-O avião operado pela LaMia, uma empresa com sede na Bolívia, se chocou contra uma montanha perto da cidade de Medellín depois de ficar sem combustível, uma vez que o piloto não reabasteceu a aeronave para a Empresa economizar combustível. Foram 71 mortos entre jogadores da Chapecoense, jornalistas e outros profissionais.
-A Polícia Civil conclui o inquérito da morte de um empresário Anselmo Vicente Ribeiro, de 42 anos, que foi assassinado com veneno de rato, pela própria mulher que queria receber o seguro da vítima.
Imagina que tudo isso aconteceu à vista de Deus e com o Seu consentimento, Sua permissão.
É lógico que esse raciocínio está equivocado, pois transferimos a responsabilidade de nossos atos para os “ombros” de Deus.
Muitos espíritas para explicar certos acontecimentos credita tudo à lei de causa e efeito:
-“Se uma pessoa morreu queimada é porque assassinou alguém noutra existência ou suicidou-se da mesma forma em outra vida”.
-“Se um homem morreu afogado é porque afogou seu amigo na outra vida para ficar com sua esposa”.
-“A esposa que assassinou o empresário rico para ficar com sua herança o fez para cumprir a Lei de causa e efeito, já que o marido em outra vida assassinou seu irmão para ficar com toda a herança de seu pai”.
Se o objetivo é ensinar ou defender a ideia de que tudo ocorre como fruto da Justiça Divina, que não existem vítimas inocentes, esquecem-se que nem sempre uma morte traumática é expiação de faltas. Pode ser prova. Vasta literatura sobre o assunto já existe, tanto na forma de romances como de estudos doutrinários.
Vamos considerar que todos nós sejamos devedores, sem exceção. Como pessoas “condenadas” por nós mesmos, por certo cometemos crimes no passado, em outras vidas, infringindo a Lei de Deus. Toda ação desencadeia uma reação. Ora, se existe um momento para ocorrer a reação (consequência), existiu um momento para ocorrer a ação, que dependeu exclusivamente do nosso livre-arbítrio.
Mas por que então essa ação não poderá estar ocorrendo exatamente agora para desencadear um efeito no futuro?
E quem poderá garantir que essa ação de hoje não esteja prejudicando alguém que não deve nada, que é inocente?
Infelizmente como estamos num mundo onde o mal predomina, isso acontece a todo o momento.
Pensemos nas mortes coletivas. Encontramos inúmeras matérias tratando desse assunto – basta buscar na internet. Os autores se revezam entre a fé cega e a raciocinada. Uns acreditam de forma absoluta que tudo estava previsto, enquanto outros apreciam o assunto de forma mais racional, considerando outras variáveis.
Fenômenos da natureza como terremotos, tsunamis, erupções vulcânicas sempre provocaram mortes em massa.
Na história recente temos presenciado mortes por outros motivos como naufrágios, acidentes aéreos, automobilísticos, incêndios, desabamentos, enchentes etc.
Mas por que acontecem essas situações onde muitas pessoas desencarnam ao mesmo tempo?
A reflexão mais precisa, no nosso entendimento, diz respeito às condições precárias do nosso planeta, ainda muito material e sujeito às vicissitudes que lhe são próprias, suas mudanças geológicas, sua instabilidade e grosseria, que oferecem palco para fenômenos naturais, doenças e acidentes – inúmeras situações de risco, portanto.
“Com a evolução do conhecimento científico o homem passou conhecer mais a fundo os detalhes do ambiente onde vive, o planeta Terra. Passou a conhecer e a entender os vulcões, os terremotos, os tsunamis, as ações dos ventos, das chuvas, do fogo, do frio e do calor. Assim, hoje, já sabemos que o planeta nos traz situações de risco à vida do corpo, e passamos a evitá-las quando possível. Evitamos ocupar encostas de morros, evitamos ocupar áreas sujeitas a terremotos, não ocupamos áreas de risco próximas a vulcões com possibilidade de erupção. Ao mesmo tempo a evolução da tecnologia nos trouxe sistemas de alerta para tempestades, tsunamis e erupções vulcânicas, reduzindo o risco de exposição das pessoas a tais eventos naturais. Desta forma, com base no conhecimento, na mudança de comportamento e na prevenção, certamente temos evitado mais situações de desencarnes coletivos em função de eventos naturais”.
“Por outro lado, a evolução do conhecimento humano gerou mudanças importantes na sociedade global. Intensificamos as relações entre países e continentes. Desenvolvemos aeronaves com capacidade de transportar centenas de passageiros, grandes navios com capacidade para mais de 6 mil pessoas, automóveis, ônibus, edifícios. Mas, nem sempre o conhecimento aplicado consegue prever todas as situações, e o desenvolvimento da cultura, da mesma forma, nem sempre acompanha o avanço da tecnologia. Assim temos situações diversas que podem levar a acidentes: por um lado podem ocorrer falhas nos aviões, navios, automóveis, trens; por outro lado muitas vezes fazemos uso inadequado desses meios de transporte, nos colocando em situações não previstas e causando acidentes.”(1)
Antes de termos inventado aviões, automóveis e edifícios não ocorriam desencarnes envolvendo estes recursos. Nós os inventamos, nós os usamos, nós os mantemos, nós cuidamos ou não do seu aprimoramento e das condições para seu uso. Estradas com manutenção precária; aeroportos situados dentro das cidades e com restrições para ampliações; pressão por resultados financeiros crescentes que acabam reduzindo a atenção e os investimentos em segurança; todas essas situações são escolhas humanas, escolhas feitas por nós espíritos encarnados, e que muitas vezes levam a situações que provocam o desencarne de várias pessoas.
E como temos a população em constante crescimento, temos cada vez mais locais onde ocorre a aglomeração de pessoas, como por exemplo em aeroportos, rodoviárias, supermercados, shopping centers, grandes eventos, casas noturnas, escolas, hospitais. Quais são os riscos que estes ambientes podem oferecer à vida daqueles que lá estão? Temos pensado a respeito? Temos atuado em sua prevenção? Como espíritos encarnados todos fazemos parte do grupo responsável pelo padrão de vida estabelecido na Terra no momento.
Na visão espírita não há destino. Há justiça, o que significa efeitos coerentes com as causas que lhes deram origem. Se atuarmos no sentido da prevenção, do ajuste de comportamento, da manutenção da vida, teremos menos situações de desencarne, independentemente de quantas pessoas estejam envolvidas.
Entretanto, se adotarmos as explicações religiosas que eximem a sociedade de sua responsabilidade sobre tais fatos, justificando os desencarnes em supostos processos ditos cármicos, estaremos aceitando postergar aprendizados importantes e repetir sofrimentos evitáveis.
Fernando Rossit
(1) http://www.verdadeluz.com.br/desencarnes-coletivos-na-visao-espirita – Nazareno Feitosa