Jeito de Falar – Orson Peter Carrara
- Colunas
- 08/02/2019
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O escritor Rubem Alves (www.rubemalves.com.br) publicou no Correio Popular, de Campinas, caderno C, página C-2, de 18 de julho de 2004, uma bela crônica intitulada O que é que você faria? Considerei-a muito oportuna. Embora longa (quase uma página), destaco ao leitor o teor principal. Ele traz uma estória no artigo e usa um exemplo médico, desculpando-se pela comparação, para citar como é importante a maneira de dizer as coisas ou se quisermos, como dizemos e a quem. Pois esta maneira pode destruir vidas e sonhos.
A história citada pelo escritor comenta o relacionamento de um casal que muito
se ama. Ela desenvolveu um câncer no seio e teve que extraí-lo, mas isso não
abalou o relacionamento do casal, apesar das dores e aflições. Em cinco anos, o
outro seio também foi afetado, mas o bom e amigo médico que antes a atendera já
havia morrido.
Procuraram outro médico, mas este, completamente insensível às dores do casal e especialmente da mulher, ao vê-la sem um seio, já exclamou friamente: “Mas a senhora já não tem um seio… Seu caso é muito mais grave do que eu imaginava”.
E o escritor, comentando a própria estória, colocou em seu
texto: “Fico a me perguntar. Por que é que ele falou o que falou? Não falou
para informar mulher e marido de uma coisa que não soubessem. Eles sabiam que
ela não tinha um seio. Também não falou para certificar-se de algo que estava
vendo, mas não via bem, por ser ruim dos olhos, pois ele enxergava muito bem. E
qual a razão do seu frio, imediato e cruel diagnóstico. Para que falou isso?
Era necessário? Não, não era necessário. Seu diagnóstico em nada contribuiu
para o tratamento daquela mulher. Ou será que ele falou assim por inocência?
Não imaginava o veneno que suas palavras carregavam? Não imaginava o efeito de
suas palavras sobre aquela mulher despida, sem um seio, humilhada, amedrontada.
Se falou por inocência digo que o dito médico só pode ser um idiota que nada
conhece sobre os seres humanos.”
E continua: “Crueldade não é algo que somente existe nas câmaras de tortura.
Ela se faz também com palavras. Há palavras cruéis que apagam a tênue chama da
esperança. (…)” E pergunta em seguida: “(…) qual é o lugar, nos currículos de
medicina, onde tanta coisa complicada se ensina, para uma meditação sobre a
compaixão? É na compaixão que a ética se inicia e não nos livros de ética
médica. Ah! Dirão os responsáveis pelos currículos – compaixão não é coisa
científica. Não entra na descrição dos casos clínicos. Não pode ser comunicada
em congressos. Portanto, não tem dignidade acadêmica. Certo. Mas acontece que
não somos automóveis a serem consertados por mecânicos competentes. Somos seres
humanos. Amamos a vida, queremos viver. Sofremos de dores físicas e de dores da
alma: o medo, a solidão, a impotência, a morte. O que esse médico fez não tem
conserto. Uma vez feito a ferida sangra. Palavras não podem ser recolhidas. O
sofrimento foi plantado.(…)”
E como indagou o autor em seu texto, deixo a pergunta para nós mesmos: o que é
que faríamos na mesma situação? Claro que não especificamente como médico, pois
o exemplo se aplica a qualquer outra ocorrência de relacionamentos humanos.
A situação traz à lembrança o capítulo X de O Evangelho Segundo o Espiritismo, intitulado Bem-aventurados os misericordiosos. No subtítulo O argueiro e a trave no olho, em lúcido texto, pondera o Codificador: “Um dos defeitos da Humanidade é ver o mal de outrem antes de ver o que está em nós. (…) Que pensaria eu se viesse alguém fazendo o que faço? Incontestavelmente é o orgulho que leva o homem a se dissimular os próprios defeitos, tanto ao moral como ao físico. Esse defeito é essencialmente contrário à caridade, porque a verdadeira caridade é modesta, simples e indulgente (…). Se o orgulho é o pai de muitos vícios, é também a negação de muitas virtudes; encontramo-lo no fundo e como móvel de quase todas as ações (…)”.
Nessa última palavra, podemos enquadrar as situações do exemplo acima, na questão médica e que pode ser transferida para qualquer outra situação, onde nos permitimos desprezar, discriminar, maltratar com palavras ou acentuar o sofrimento de alguém com nossa maneira de dizer…
Afinal, nada justifica a crueldade, ainda que em palavras.