O Endereço de Deus
- Colunas
- 27/08/2023
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Richard Simonetti
Imaginemos que um gênio das Mil e uma Noites lhe concedesse a satisfação de três desejos, amigo leitor. O que você pediria? Certamente, o conhecimento pleno do Evangelho, luz abençoada de Deus em nosso caminho, inspirar-lhe-ia nobre roteiro de realizações.
Mas o homem comum, de visão limitada pela ignorância dos valores espirituais, coração sintonizado com o imediatismo terrestre, certamente, optaria por riqueza, saúde, fama, poder, prazer, bem-estar. Geralmente, as pessoas almejam uma existência sem sobressaltos, nem problemas, com tanta “sombra e água fresca” quanto possível, pois, afinal “ninguém é de ferro”.
No entanto, se nos concedessem a mesma possibilidade de escolha nos tempos em que vagávamos pelo Continente Espiritual, às vésperas da presente existência, certamente, seria diferente. No livro Ação e Reação, de André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier, deparamos com ilustrativa experiência envolvendo Druso, dedicado orientador de uma instituição socorrista do Mundo Espiritual.
Prestes a reencarnar, dirige-se a Jesus, em comovente oração, destacando, em dado momento:
E agora, Senhor, que a esfera dos homens me descerrará as portas, acompanha-me, por acréscimo de misericórdia, com a graça da tua bênção. Não permitas que o reconforto do mundo me faça esquecer-te e constrange-me ao convívio da humildade para que o orgulho me não sufoque. Dá-me a luta edificante por mestra do meu resgate e não retires o teu olhar de sobre os meus passos, ainda que, para isso, deva ser o sofrimento constante a marca de meus dias.
Não raro, mesmo beneficiados pelo conhecimento espírita, enfrentamos um problema “ótico” na apreciação da jornada humana. Imaginamos que as situações problemáticas e angustiantes são cobranças cármicas, relacionadas com débitos do pretérito. Não percebemos que se situam muito mais por abençoados estímulos, a fim de que não nos acomodemos, nem nos transviemos. Fácil observar que nossas preces mais sentidas, nossos anseios mais nobres, sustentam-se nos convincentes apelos da mestra Dor. Lutas e dificuldades do cotidiano inibem nossas tendências viciosas.
Conversei, certa feita, com um voluntário em obra assistencial espírita, desses que chegam cheios de boas intenções e logo se afastam, dispensando explicações.
– Então, meu caro, por onde anda? Algum problema em nossa casa ou com você e a esposa? Ambos sumiram sem aviso.
– Não, Richard, não houve nada de grave. Estamos muito bem. Talvez seja esse o problema. Como sabe, quando nos casamos, a vida era difícil. Eu ainda estudava. Ganhava o sustento em emprego precário, ajudado pela esposa que vendia roupas. Logo vieram dois filhos, o primeiro com problemas de saúde. Orçamento apertado, tudo controlado. Nada de gastos supérfluos, passeios, festas ou badalações.
– Lembro bem. Economizavam até o passe de ônibus! Era uma boa caminhada até o Centro.
– Isso mesmo! Não obstante as dificuldades ou até por causa delas, encontrávamos tempo e inspiração para o cultivo dos valores espirituais. Orávamos em família, participávamos dos serviços assistenciais no fim de semana, comparecíamos às reuniões doutrinárias. Nossa vida tinha um sentido, um ideal a ser concretizado. Isso tudo nos dava muita força e abençoada tranquilidade.
Suspirou fundo e concluiu, melancólico: – Depois as coisas melhoraram. Comecei a ganhar dinheiro num promissor empreendimento comercial; meu filho superou os problemas de saúde, mudamos para um bairro de classe abastada. Multiplicaram-se compromissos profissionais e sociais. Atividade intensa, sem espaço para as orações em família, o culto, a atividade espiritual. Prosperamos materialmente, mas, tanto eu quanto minha esposa sentimos que algo precioso, de valor inestimável, ficou perdido.
– Talvez um sentido para a existência, um objetivo.
– Exatamente! Ficou um vazio. Lembro de uma expressão popular que define o assunto: Éramos felizes e não sabíamos!
Lamentavelmente, não obstante o desabafo, meu amigo ainda não encontrou tempo para retomar os ideais negligenciados.
Quando o caminho é fácil, esquecemos a bússola do discernimento. Acabamos nos desviando dos roteiros celestes que, bem sabemos, estão, perfeitamente, delineados nas lições de Jesus, reverenciado por Kardec no comentário à questão número 625 de O Livro dos Espíritos:
Para o homem, Jesus constitui o tipo de perfeição moral a que a Humanidade pode aspirar na Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo e a doutrina que ensinou é a expressão mais pura da lei do Senhor, porque, sendo ele o mais puro de quantos têm aparecido na Terra, o espírito divino o animava.
Raros se disporiam a repetir a súplica de Druso, esquecidos de Jesus e do significado de sua missão. Mas estejamos certos de que Jesus não se esquece de nós, permitindo que venham dores, lutas e dificuldades em nosso caminho. Abençoado propósito inspira o Mestre Supremo: evitar que esqueçamos o endereço de Deus.
Richard Simonetti
Fonte: Agenda Espírita Brasil