O Racismo no Brasil
- Atualidades
- 27/05/2022
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Proibido pela lei, o racismo no Brasil segue dissimulado no espaço público e se abriga com força nos domicílios. Não por nada, os ataques na internet partem de quem se sente protegido pelo anonimato do lar. E, não sem razão, os mapas com a distribuição de raças mostram que brancos e negros moram em “países diferentes”.
Foram 358 anos de escravidão, e os 128 anos sem ela não conseguiram apagar essas marcas.
O padrão nacional está em Antônio Cardoso (BA), a cidade brasileira mais ciente de sua negritude. É o único município do país em que mais da metade de habitantes se autodeclarou preto no censo de 2010 (se somar os pardos, a porcentagem pula de 50,6% para 87%). Naquele pedaço de agreste, só 2% das terras pertencem aos descendentes dos quilombos de permanência, que lá se formaram após a abolição da escravatura, em 1888.
“Nosso município é o mais africano do país, mas o poder econômico e político ainda é dos brancos”, afirma o único vereador quilombola da cidade, Ozeias Santos.
Além da diferença racial entre a região Nordeste e as regiões Sul e Sudeste, uma aproximação nas áreas metropolitanas das principais capitais revela como os brancos estão nas áreas centrais, enquanto pardos e negros moram nas periferias. Isso é bem forte em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador.
No fim do século 19, o Leblon era um local de chácaras e tinha um quilombo nele. Hoje em dia, a área detém o metro quadrado mais caro do Brasil, e cerca de 90% de seus moradores são brancos. É revelador também que o charmoso bairro carioca seja cenário constante das novelas da TV Globo, nas quais nos últimos 20 anos, coincidentemente, só 10% dos personagens eram pretos ou pardos, segundo levantamento da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). E só 5% foram protagonistas.
Além da ausência na TV, no cinema e nos concursos de miss, os negros estão marginalizados nas próprias cidades brasileiras. O centro de metrópoles como São Paulo, Rio ou Belo Horizonte é dominado pela população de origem europeia, e a periferia concentra os afrodescendentes – podem ser os negros deslocados (como os que tiveram que sair da Zona Sul do Rio) e imigrantes com forte origem mestiça.
Quando os negros ganham o centro das atenções são logo alvo de discriminação. Que o digam as celebridades, como a jornalista Maria Júlia Coutinho, a atriz Taís Araújo e a ex-globeleza Nayara Justino. “Nunca tivemos um apartheid na lei. É uma vantagem tremenda em relação aos Estados Unidos e à África do Sul. Mas não existem bons e maus racismos. Todos são ruins e perversos. O nosso é do tipo dissimulado, mas o brasileiro vem aos poucos admitindo a discriminação”, afirma Lilia Moritz Schwarcz, historiadora e antropóloga da USP (Universidade de São Paulo) e autora de vários livros sobre o assunto.
O projeto de branqueamento do Brasil começou ainda no período do Império (1822-1889), com a vinda em massa de europeus. Autores da época, influenciados pelo darwinismo social, acreditavam que em três gerações haveria no Brasil uma maioria absoluta de brancos, e os genes africanos e indígenas se diluiriam entre uma minoria mestiça. Na época, a mistura de raças era vista como uma desgraça. Esse plano funcionou em locais como Cunhataí, que do passado guarani só manteve o nome (a palavra significa “menina”). Após a expulsão dos indígenas, as empresas colonizadoras levaram multidões vindas da Saxônia e Renânia (hoje regiões da Alemanha) para todo o oeste catarinense no início do século 20.
A miscigenação foi alçada à solução salvadora na década de 1930 pela onda nacionalista. A mulata (hoje termo pejorativo) foi escolhida a síntese sensual disso. Várias afrobrasilidades viraram símbolos nacionais, como o samba e a feijoada. A capoeira, antes reprimida pela polícia, virou expressão da brasilidade. Uma santa branca que ficou negra foi escolhida a padroeira: Nossa Senhora Aparecida.
No Brasil, raça e cor se confundem. A inserção social, por exemplo, embranquece. Estão aí para comprovar os jogadores de futebol Neymar e Ronaldo, que já negaram a ascendência negra. Em Antônio Cardoso não é diferente. “Tem negro aqui que tem preconceito contra os próprios negros. É só o sujeito enriquecer que acha que é diferente”, opina a agricultora Maria Marcela dos Santos. “Seu preto sujo e imundo” foi o que o vereador Ozeias Santos teve que escutar de um colega de Câmara Municipal no ano passado. Detalhe: o agressor também é negro e responde agora processo por injúria racial.
Em 1988, cem anos após a abolição, a USP fez um questionário em que 97% dos entrevistados disseram não ter preconceito, mas 98% afirmaram conhecer alguém racista – sempre parentes, amigos ou parceiros amorosos. Esse brasileiro exemplar cercado de racistas mostra o caráter doméstico e íntimo da discriminação. Como o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) definiu: “o brasileiro tem preconceito de ter preconceito”. Em 1995, o instituto Datafolha divulgou pesquisa em que 89% afirmaram haver preconceito contra os negros no país, mas só 10% confessaram tê-lo. Entretanto, 87% dos entrevistados revelaram preconceito ao concordar com frases racistas. O levantamento foi repetido em 2008 com resultados semelhantes, confirmando o racismo dissimulado do Brasil.
Quando o Brasil vai ser resolver a questão? “É um processo longo. Vai demorar. E a solução tem de passar pela educação e pela inclusão social, afinal, agora as condições de partida não são idênticas para brancos e negros”, afirma a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz
Três pecuaristas (brancos, é claro) dominam as terras de Antônio Cardoso. E eles vivem na capital, Salvador. Os quilombos se espremem entre suas fazendas. E os quilombolas acabam como rendeiros. “A escravidão só mudou de forma. Continuamos sem terra, tendo de trabalhar para os fazendeiros. Eles deixam plantar alguma coisa para gente na caatinga, mas é só um jeito para limpar o mato para deixar o capim para o gado deles”, afirma Mirian Oliveira, líder do quilombo do Gavião.
Há muitos que negam a existência de racismo no Brasil, e que tudo não passa de “problemas pessoais”, afinal, há uma universalidade na lei brasileira e não há uma discriminação oficial. E não é que têm razão? O ponto é que esse problema pessoal é compartilhado por milhões de cidadãos e, nesse caso, passa a ser um problema social.
Tamanho é o problema que dá para vê-lo à distância, como uma foto de satélite. As diferenças entre brancos e negros estão nas estatísticas sobre educação, saúde, emprego e várias outras áreas, mas, em nenhum outro lugar, ela é tão clara como na geografia e na distribuição de raças. A casa grande e a senzala seguem firmes e fortes, mas agora aparecem como centro e a periferia.
Rodrigo Bertolotto
Repórter do UOL Notícias. Exercita um jornalismo do tipo utópico e espera uma sociedade futura em que genótipos, fenótipos e estereótipos não tenham importância.
tabuol@uol.com.br