A Vaidade

Visito pela última vez o capítulo 31 do livro “Luz Acima”, ditado pelo espírito Irmão X e psicografado pelo médium Chico Xavier, para encerrar a série sobre os piores inimigos. Na história narrada, o apóstolo Pedro viaja a pé com Jesus. No trajeto, é visitado por cinco inimigos internos. Chegou a hora do inimigo ainda não abordado: a vaidade.

Pedro e o Cristo cruzam com um romano chamado Rufo Grácus, que é semiparalítico e viaja a bordo de uma liteira carregada por fortes escravos. Ao ver a dupla, Rufo sorri para ambos com ar de desdém. O apóstolo, sem hesitar, diz que tem vontade de cruzar novamente com o “pecador impenitente, a fim de dobrar-lhe o coração para Deus”. Jesus lhe afaga o ombro e indaga: “Por que instituiríamos a violência ao mundo, se o próprio Pai nunca se impôs a ninguém?”. E arremata: “A vaidade é um verdugo sutil”.

Acredito ser bem interessante, e até inusitado, Jesus pontuar que a imposição de pontos de vista – algo bem violento, por sinal –, seja uma forma de vaidade. Mas diante do que temos observado no mundo atual, faz muito sentido.

A vaidade salta aos olhos no comportamento de Rufo, que despreza os viajantes por serem quem são (Jesus e um apóstolo) e, por conseguinte, trazerem a boa nova de que todos os homens são iguais perante Deus, algo inadmissível para um romano que é cercado de regalias e se vale de mão de obra escrava. Ou então porque, aos olhos dele, ambos são socialmente inferiores. Ou pelos dois motivos juntos. Ao mesmo tempo, Pedro vai na mesma toada e quer dobrar o impenitente à força. Uma espécie de conversão imposta que fará Rufo aceitar Jesus num piscar de olhos, deixar toda a vida faustosa e arrogante para trás e se tornar um seguidor do Nazareno.

É aí que Jesus entra em cena e ressalta que não dá para querermos nos impor a ninguém, pois, além de ser uma violência, é uma forma de deixar vir à tona a vaidade na sua pior forma: a de verdugo, só que sutil, como manda a etiqueta dos que se valem da vaidade para impor ideias.

Quantas vezes, seja em ambiente profissional, religioso ou familiar, vemos pessoas sutilmente manipulando as outras para que adiram às suas vontades, caprichos ou pontos de vista? Só elas sabem o que é melhor para a empresa. Só elas sabem o que é melhor para os entes queridos. Só elas sabem a melhor forma de passar uma camisa, refogar uma couve, lavar uma janela… Vaidade pura!

Isso me faz lembrar a história de D. Léa, amiga de minha família. Mãe de dois rapazes já casados, D. Léa elogiava muito as noras. Segundo elas, ambas eram excelentes esposas e mães. Só que havia um pormenor: as noras não se entrosavam muito bem. Não que elas se detestassem. No entanto, como possuíam poucos interesses em comum e tinham filosofias de vida distintas, mantinham uma distância diplomática. Nada que interferisse nas relações familiares. Comentando o assunto com minha tia, D. Léa declarou: “As duas cuidam muito bem dos meus filhos, dos próprios filhos e gostam muito de mim e do meu marido. Se elas possuem diferenças entre elas, não é problema meu. Elas que se entendam futuramente, se quiserem.” Aplaudi D. Léa quando soube dessa história. Conheço mães que não sossegariam até transformar as noras em melhores amigas. Armariam encontros, bate-papos, conversariam exaustivamente com uma e depois com a outra até provocarem um desconforto tamanho que culminaria numa cisão familiar daquelas. Melhor sermos como D. Léa e não nos deixarmos levar pela vaidade de acharmos que temos o dom de irmanarmos a todos, dizermos sempre a palavra certa na hora certa e fazermos todo mundo pensar do jeito que pensamos, crer no que cremos ou gostar do que gostamos. O mundo não é arrumadinho de modo a satisfazer nossa vaidade.

É por causa dessa postura que, muitas vezes, os Rufos da vida desdenham de quem possui outra religião, nacionalidade, orientação sexual, tom de pele, estilo de vida… E os Pedros da vida, por sua vez, aparecem com o ímpeto de fazer com que os diferentes se dobrem de joelhos a Deus, esquecidos que, conforme assevera Jesus, o próprio Deus jamais se impôs a quem quer que fosse.

Descendo a rua onde moro para ir à farmácia mais próxima num sábado à noite, deparei, há alguns anos, com dois homens. Um deles me chamou e disse que, na igreja da qual fazem parte, Deus havia me chamado naquela noite e que eu deveria atender a esse chamado e frequentar tal igreja. Agradeci o convite, disse que era espírita há muitos anos e com muitas atribuições no movimento espírita local. Acrescentei, ainda, que era escritor espírita com vários livros publicados, que estava muito feliz como espírita e segui adiante. Sempre aquela velha mania de pensarmos que só existe uma religião correta – a nossa – e que todos têm de se dobrar a ela. Vaidade e respeito à diversidade não combinam.

Radicalizando esse pensamento, nos deparamos com templos de religiões de matriz africana sendo destruídos por seguidores de outras vertentes; manifestações culturais como samba e capoeira (hoje assimiladas) outrora perseguidas por autoridades; ritmos como funk, rap e hip hop tidos como subprodutos culturais; pensamentos progressistas tachados de subversivos para serem abafados; fanáticos políticos invadindo festas de aniversário particulares decoradas com motivações políticas opostas para fuzilar o aniversariante e, exemplo mais tocante, o Nazareno sendo aprisionado, julgado de forma parcial, preterido por Barrabás e crucificado no madeiro infamante. Jesus, por isso, acerta em cheio quando diz que a vaidade é um verdugo sutil. Um algoz matreiro que se aproveita da nossa invigilância para semear preconceito, intolerância e violência.

Aliás, é muito interessante essa alegoria do verdugo sutil utilizada pelo Mestre. Geralmente, a definição corriqueira que encontramos de verdugo é a do responsável pela execução da pena de morte ou castigos corporais. Nada sutil, portanto. O Cristo, todavia, apresenta a sutileza de sermos corroídos paulatinamente pelo verdugo da vaidade, que nos faz subir num pedestal a ponto de acharmos que só existe um ponto de vista correto, uma religião correta, uma raça correta, uma orientação sexual correta uma classe social correta… E qual seria? A nossa, é claro. Só que se despir da vaidade é aprender a conviver com as múltiplas diversidades que o mundo nos apresenta. Pena que muitos prefiram, por pura vaidade, se arvorarem em verdugos dos nossos irmãos em humanidade.

Em “O Livro dos Espíritos”, logo no início – Prolegômenos – espíritos como São João Evangelista, Sócrates, Platão e São Vicente de Paulo assinam o belíssimo texto que diz, num dos últimos parágrafos:

“A vaidade de certos homens, que julgam saber tudo e tudo querem explicar a seu modo, dará nascimento a opiniões dissidentes. Mas, todos os que tiverem em vista o grande princípio de Jesus se confundirão num só sentimento, o do amor do bem, e se unirão por um laço fraterno, que envolverá o mundo inteiro. Estes deixarão de lado as miseráveis questões de palavras, para só se ocuparem com o que é essencial.”

Quando nos desfizermos de todas as vaidades, o verbo amar imperará, o ideal de aprimoramento espiritual motivará a todos, as diferenças de ordem cultural, religiosa etc. serão respeitadas e todos nós praticaremos os valores cristãos, trazendo muitas alegrias para toda a humanidade. Sigamos sem temor!

Marcelo Teixeira

BIBLIOGRAFIA:

  1. KARDEC, Allan – O livro dos espíritos, Federação Espírita Brasileira (FEB), 60ª edição, 1984, Brasília, DF.
  2. XAVIER, Francisco Cândido – Luz Acima, Federação Espírita Brasileira (FEB), 5ª edição, 1984, Brasília, DF.