Aos Homossexuais, o Ombro de Deus

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Eu os chamo aqui por Anthony e Araújo – embora não sejam o nome deles. Não quero revelar a identidade dos dois. Anthony era padre e gay. Araújo era pastor pentecostal e gay. Uso o verbo no passado porque os dois se suicidaram.

Por ser celibatário, Anthony passou a vida perseguido por aquilo que tratou como um gigante. Sua homossexualidade o perseguiu e o aterrorizou desde sempre. Sem jamais ter transgredido a fronteira da castidade que impôs a si mesmo, padre Anthony me escreveu algumas vezes antes de se matar. Em todas, terminava dizendo: “Ricardo, estou exausto”. Seu desabafo, eu mal atinava em minha ingenuidade, era sinal de que aquele abatimento seria fatal.

Numa manhã de sábado, padre Anthony leu dois contos de Tolstói, colocou um CD com música sacra para tocar, vedou janelas e portas do quarto com jornal, tomou trinta e duas cápsulas de um calmante possante, abriu a válvula do botijão da gás e morreu.

Convivi com o pastor Araújo. Em nosso tempo breve como colegas de ministério, suspeitei da sua homossexualidade. Porém, pouco depois, Araújo se casou. O tempo passou rápido. Tive notícias que Araújo estabeleceu família – composta de dois filhos, uma filha e duas netas. Achei que tinha “visto” coisas demais na vida dele. Como Araújo se mudou com toda a família para outra cidade, e devido à distância geográfica, perdemos contato. Sempre que voltava a pensar no antigo companheiro, e na possível homossexualidade, voltava a achar que não passava de conjetura minha. Eu me corrigia por julgá-lo, e atribuía a meu preconceito o fato de pensar que talvez fosse homossexual.

Corrigi-me alguma vezes: Como posso ser tão suspeitoso? Só por que detecto certos trejeitos não tão masculinizados? Décadas depois de casado, a mulher do pastor Araújo saiu para fazer compras no supermercado. Era tarde de segunda-feira. Ao voltar, encontrou o corpo do marido pendurado numa corda que descia da viga da cozinha. Ele aproveitou aqueles poucos momentos a sós para se enforcar. Vendo em retrospectiva, o casamento do pastor não passou de fuga. Como não havia, em sua realidade religiosa, como encarar a própria identidade, Araújo tentou viver uma vida dupla. Ele era gay e não achou meios de fugir de sua identidade. O sofrimento varou anos e anos.

Numa tentativa desesperada de evitar escândalo, sem coragem de enfrentar os filhos com a verdade, e diante do medo de rejeição, Araújo sucumbiu. Tudo lhe pareceu insustentável. Anos de mentira se tornaram pesados demais. Na carta de despedida, Araújo pediu perdão pelo ato, que ele mesmo tratou como tresloucado.

Sua carta tornou-se pública – chegou à minhas mãos. Transcrevo um trecho:

“Não consigo conviver com o inferno que criei para mim mesmo. Estou cansado de viver rasgado por dentro. Sempre fui homossexual. Consegui esconder de todos, menos de mim mesmo. Desesperadamente, procurei me ver livre da condição em que nasci. Me dediquei à família, à igreja, mas por dentro sempre sofri. Minha miséria me perseguiu o tempo todo. Exausto, saio da vida para não magoar ainda mais quem me quer bem. Prefiro deixar de existir a continuar existindo como vivi”.

As duas histórias que acabo de narrar são verdadeiras. Mudei apenas alguns detalhes para preservar os envolvidos. Não são hipotéticas, e elas aconteceram bem próximas de mim. Como pastor protestante, tornei-me confessor e conselheiro de um padre. Fizemo-nos amigos, mesmo virtuais. Apesar de distante, acompanhei os desdobramentos da tragédia de um pastor protestante. Ambos sucumbiram mesmo inseridos em suas respectivas tradições religiosas. Os dois não suportaram continuar no armário.

Continuei a ser provocado, a ser convocado, a ser interpelado nesse tema. Os eventos não cessaram de bater na minha porta. Devido à pequena – mas barulhenta – repercussão de meus posicionamentos sobre a comunidade LGBT, recebi outra mensagem. Esta me devolvia aos primeiros anos como líder de uma comunidade cristã em Fortaleza. Bruno (não é seu nome verdadeiro) me escreveu:

Ricardo, parece que foi ontem, mais precisamente há mais de 30 anos, que nos reunimos naquela igreja de lona da Betesda na Aldeota em Fortaleza. O assunto da reunião era mais precisamente a minha questão homossexual […]. Aquela reunião definiria o restante de minha vida no exílio. De você, ou de seu ministério, recebi apenas repúdio, abandono e rejeição! Na ocasião você orou por mim e repreendeu o demônio da homossexualidade! Pelo visto a oração nada serviu, pois continuo homossexual até hoje aos 56 anos de idade, e com uma vida muito abençoada. Sou empresário no Rio de Janeiro continuo firme na fé graças a Deus, e, evidentemente, gay!

Depois de ter passado pelo trauma de dois suicídios, mais uma mensagem voltava a me abalar. Eu devia uma explicação ao Bruno; agora senhor, que um dia escorracei. Trinta, quarenta, cinquenta anos não apagam as nódoas que deixamos no passado. Tomei coragem. Respondi. Modifiquei alguns detalhes da minha resposta para preservar a identidade do Bruno.

Caro Bruno,

Recebi seu e-mail com sentimentos misturados. Primeiro: veio a sensação bumerangue. Acordei para uma realidade: tudo o que lançamos ao vento, cedo ou tarde, retorna. Segundo: ver-me cara a cara com uma situação constrangedora como a que você descreveu, e que fui protagonista, me deixa constrangido. Estou envergonhado, certamente.

Eu gostaria de lhe pedir perdão. Não posso, todavia. Por um simples fato: aquele Ricardo não existe mais. Ele desapareceu, juntamente, com a teologia que o formava, que incentivava o seu idealismo e alimentava, inclusive, o seu messianismo triunfalista.

Devo  acrescentar que antes de mudar com respeito a homoafetividade,  passei por um processo de despedida de uma teologia que me tornava, ao mesmo tempo, algoz e vítima. Acreditei, naquele tempo, em verdades que, mal sabia, me tornaram um homem inclemente e obtuso.

Aceitei interpretações literais da Bíblia, concebi a humanidade como caída e merecedora da ira de Deus. Defendi um Deus poderoso em detrimento à sua enorme bondade e graça. Coloquei o amor divino em segundo plano. Falhei em criticar aquela teologia de uma soberania que diz que o Todo-Poderoso tem tudo sob seu rigoroso controle. Essa doutrina é cruel, pois torna Deus corresponsável por barbáries e injustiças. Todas essas convicções se esvaíram lentamente em meu viver.

O processo foi longo, até que mudei sobre a homossexualidade. Olho para trás e tenho vergonha de ter acreditado que um homossexual tem demônio. Você tem razão: sim, alguns precisam de tempo para que a verdade os alcance. Não sei precisar quanto tempo eu precisei, mas eu fui alcançado pela graça e pela verdade. A verdade tornou-se hospitaleira antes de ser sentenciadora.

E a ironia de tudo, Bruno, é que aquilo que fiz com você, expondo, julgando e discriminando, anos depois sofri na própria pele. A Betesda que você conheceu, rachou. Passamos por uma divisão belicosa. Quando comecei a me desfazer das vacas sagradas da teologia evangélica, um grupo se levantou contra mim, conspirou numa padaria da Avenida 13 de maio em Fortaleza. Eles prepararam um golpe para me expulsar da comunidade a que dediquei a vida; não conseguiram. Mas o bando levou a enorme maioria dos membros. Os conspiradores planejaram, e executaram, um minucioso projeto de espalhar pela cidade que eu havia apostatado da fé e que negava o próprio Deus. Tornei-me um proscrito, comentado e vilipendiado nos salões de beleza, nos corredores das feiras-livres e por todos os lados. Fui jogado para um exílio parecido com o seu.

Resultado: pessoas inocentes da Betesda em Fortaleza padeceram enormemente. E eu ganhei o selo de apóstata.

Mas, esses traumas não foram impedimento para as mudanças que Deus vinha soprando em minha alma. Mudei, mudei e mudei. A Geruza, minha mulher, pós-graduou-se em sexualidade na Faculdade de Medicina da USP. Eu cresci bastante nesse tempo. Ela me ajudou a entender um pouco mais sobre a complexidade dos comportamentos humanos. Tanto a Geruza como eu abandonamos expressões como pecado para descrever a identidade homoafetiva. Aconteceu de eu dar uma entrevista para a revista Carta Capital sobre o estado laico. Sofri novamente. Tornei-me um constrangimento entre pastores. Perdi inúmeros amigos.

Insisto com você, Bruno: nem tenho como pedir perdão. Posso, entretanto, dizer com letra maiúscula: Lamento. Lamento por ter abraçado aquela teologia, por ter militado naquele movimento chamado evangélico e por ter promovido uma religião que condena, exclui e prefere punir ao invés de compreender.

Se, de alguma forma, você se sentir livre para nos visitar na Betesda aqui em São Paulo, por favor, venha. Eu e a Geruza nos sentiremos felizes em lhe abraçar.

Abraço afetuoso,

Ricardo

Relato essas minhas experiências para tornar público o porquê das mudanças que experimentei. Se mudei a respeito da homossexualidade não o fiz devido a investigações conceituais. Sofri, chorei e lamentei ao lado de pessoas que aprendi a amar. Notei o colossal preconceito e a desmesurada resistência de religiosos – católicos, protestantes e pentecostais – em admitir a homossexualidade como mera peculiaridade humana. Homossexuais não escolheram ser homossexuais devido a traumas, pecado ou tendência à promiscuidade. No cipoal interior das pessoas, somos diferentes. Reagimos às pulsões sexuais distintamente e isso não implica em transgressão libidinosa.

Após passar por dores e traumas, não pretendo ver-me como um religioso de mente obturada e coração empedernido. Desejo me doar. Anelo ser ponte de diálogo. Quero que minha comunidade dê acolhimento e compreensão a tantos que não encontram refúgio.

Homossexuais, principalmente os cristãos, sofrem em um mundo que os vê como pervertidos. Os que procuram seguir a Jesus, padecem ainda mais: juízos, condenação e a imposição de voltar a se adequarem ao que é tratado como normal. Por não quererem romper totalmente com a família, berço religioso, convivem com reprovações e experimentam exclusões.

Muitos, por insistirem em não abrir mão da espiritualidade, são condenados a um inferno, duplamente, desesperador. Tragicamente, só encontram alívio no suicídio.

A igreja não pode fazer de conta que os homossexuais não existem. Jesus os acolheria. Nunca coube aos cristãos o papel de reprovar, condenar e hostilizar. À igreja, cabe acolher aos que sofrem marginalização. Há lugar para todos no aprisco do Nazareno.

O padre Anthony ainda lembrou de deixar um último bilhete endereçado a mim (já o destruí para preservar o segredo). Depois que li o desabafo do sacerdote católico que eu aprendera a amar, chorei por vários dias. O tormento daquele homem dilacerou a minha alma. Tive vontade de gritar aos quatro cantos as palavras de Jesus: Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve – [Mateus 11:28-30]

O sofrimento de homossexuais, vítimas de preconceito e chacota, deve ecoar em corações sensíveis. A dor que os aflige deve ser nossa dor. Convém lembrar que integridade, caráter, fome e sede de justiça, e beleza humana, não dependem de identidade de gênero. Urge reconhecer que a Imago Dei (Imagem de Deus) não é privilégio de alguns. Todos e todas guardam fragmentos do divino. É tempo de oferecer o ombro aos que sofrem; e que nosso ombro seja o ombro de Deus.

Ricardo Gondim

http://www.ricardogondim.com.br/

Originally posted 2016-06-14 12:49:44.