Os Sonhos dos Moradores de Rua
- Doutrina Espirita
- 19/11/2023
- 25 min
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Não existe ser humano que desconheça o amargor da rejeição. Mas para alguns essa sensação é permanente. Talvez por isso que moradores de rua sejam tratados como seres invisíveis. Encará-los é se defrontar com solidão, culpa, vergonha, abandono. É uma combinação de sentimentos que todos querem evitar.
Mas a existência sofrida nem sempre apaga os sonhos. Mesmo de pessoas fragilizadas. Algumas delas serão apresentadas a você. Gente que aspira por afeto e dignidade, ou pelo menos uma parte disso. Quase ninguém parece disposto a conceder atenção a seres humanos enrolados em um cobertor no canto de uma calçada. Mas a empatia da sociedade poderia significar menos preconceito e alguma oportunidade.
Não seria pouca coisa.
Não existe cidadão de segunda classe, e um morador de rua tem os mesmos direitos de qualquer pessoa.
Não há justificativa para expulsão, principalmente de locais públicos de livre acesso. Mas 55% são impedidos.
Depoimentos:
1) O Medo do Coração: História de Max (fuga).
Consciente da violência que carregava consigo, o russo Fiódor Dostoiévski transformou esse sentimento em literatura. Max não tem habilidade com as palavras, mas compartilha da mesma personalidade. Aflito, bateu em retirada. Ele não fugiu de Bom Jesus dos Perdões (SP); fugiu da tentação de matar o tio.
Max se vê como o cara que num acesso de fúria pode cometer uma “besteira”, eufemismo para homicídio. A ciência chama de transtorno explosivo intermitente, situação associada a uma criação severa e violenta. A criança desenvolve um desejo de vingança que pode ser alimentado pelo consumo de conteúdos ligados a esse conceito.
Max acredita que seu caso tem cura. Acha que quando o tio morrer o lado negro de seu coração vai se purificar. Até este dia continuará perambulando pela avenida Paulista.
Eu saí andando por aí para evitar coisas piores. Acabei vindo morar na rua, mas para eu não fazer coisa errada. A gente não conhece nosso coração”.
2) Minha dor é a Família: A História de Daiane (culpa).
Daiane chorou durante quase toda a conversa. Cada pergunta que resvalava em assuntos familiares terminava em lágrimas. Com uma sinceridade impactante, contou sobre a culpa em seu coração. Falou sobre o sofrimento que o crack causa.
A dor maior é sempre sobre os parentes. A dependência priva Daiane de ver Isabella, filha do primeiro casamento e que, aos 16 anos, irá se mudar em breve para os Estados Unidos. A outra filha tem um ano e meio e mora com a avó paterna. Depois que vendeu eletrodomésticos, móveis e roupas, Daiane abandonou a casa e a criança em abril.
É a terceira vez que Daiane fica sozinha com as drogas. Pelas experiências anteriores, ela afirma que a partir do tratamento começa um processo de recuperação dos valores e retorno dos familiares. É como nascer de novo, resume. Mas Daiane se diz sem forças para tentar voltar a viver outra vez.
Meu sonho é acordar de manhã, ir trabalhar, almoçar com os amigos, limpar minha casa, lavar roupa, assistir a uma televisão, dormir no quente.
3) Eu acredito em Milagres: A História de Cássio (ilusão).
Cassio estava tão esparramado na calçada que parecia desmaiado. Era a preguiça depois do almoço, potencializada por ter enxugado uma “barrigudinha”, cachaça de R$ 4 vendida em garrafa de plástico. A Cassio não se aplica a máxima de que a bebida entra e a verdade sai. Ele relutou em assumir que morava na rua. Mas, em seguida, embalou e disse que é desses que joga a real. Pediu dinheiro e deixou claro: era para comprar bebida.
Mesmo dormindo enrolado num cobertor sujo e fazendo a mochila de travesseiro, Cassio se diz mais feliz do que no conforto e amor de casa. A psicologia ensina que uma década de vício leva um indivíduo a um estado alterado de consciência. O estilo de vida prejudica a saúde física e mental, mas a pessoa age como se fosse movida por uma força mágica. Assim, encontra justificativa para qualquer atitude.
Cassio sabe que não consegue passar 24 horas sóbrio, mas não perdeu a esperança. A velhice de seus sonhos tem uma cadeira no quintal e netos correndo ao redor. “Eu acredito em milagres.”
4) O Chaplin da Ruas: A História de Robert (redenção).
Experimentar a rejeição transforma a volta por cima em desafio. É um sentimento que pode ser a tábua de salvação para uma pessoa solitária. Para Robert, isso é mais forte porque foi ele o causador do próprio infortúnio. Falamos de um morador de rua singular. As lojas doam os jornais diários para ele. O homem gosta de se manter informado.
Mas isso é diferente de ser feliz. Robert sonha com o café da manhã perfeito, aquele das propagandas de margarina. No mito da família feliz, parentes nunca brigam nem acordam de mau humor. O raciocínio fica mais forte quando combinado com o passado – a memória é perita em moldar as lembranças. As coisas boas ficam incandescentes. As ruins, se apagam.
O que aconteceu e o que está por vir estão idealizados. O prêmio final pode não estar na linha de chegada, mas a combinação fará a pessoa percorrer todo o caminho. Mas existe um atalho. Como nunca desistiu, Robert joga toda semana na loteria. “Ainda quero andar de Camaro amarelo”, afirma.
5) Tenho vergonha da minha Família: a história de Saulo (vergonha).
Saulo esticou seu cobertor a duas estações de metrô de onde vários parentes moram, inclusive os seus dois filhos. De acordo com o Google Maps, o trajeto pode ser cumprido em 15 minutos. Mas o caminho é muito mais longo. Saulo não está separado da família pela distância. É pela vergonha.
Ter a consciência que terá de explicar o motivo dos anos de ausência apavora Saulo. Nenhum pai quer chegar diante dos filhos e se apresentar como viciado, ex-detento e morador de rua. Essa condição é o que ele aponta como vergonha – saber que vive numa situação reprovada pela sociedade.
Os filhos são o ponto mais fraco do ser humano e aumentam a angústia de Saulo. Ele tem certeza que será aceito pelos parentes, mas teme que a anuência seja acompanhada de pena. Prefere ficar longe.
Hoje minha família são esses dois [cachorros]. A minha felicidade é de repente retirar um documento. Arrumar um local pra mim, minha mulher e meus cachorros.
6) Elias e a Solidão.
Quando percebia que o TAB ia se despedir, os olhos de Elias perdiam o brilho demonstrado durante a entrevista em que falava pelos cotovelos. Ficar sempre sozinho perturba. Não ter alguém para cuidar e ser cuidado faz o indivíduo se sentir rejeitado, abandonado.
É comum a busca por algo que preencha esse espaço. No caso dos moradores de rua, os subterfúgios mais comuns são cachorros, promiscuidade ou drogas. Um dos alívios de Elias é escrever cartazes em inglês. Para tentar provar o domínio da língua, ele sacava um livro e mostrava que o título foi traduzido errado.
É um paliativo, mas ele diz que a solução é um emprego e a certeza que em determinado dia pingará o salário. Daria para comprar coisas e quem sabe até arranjar uma companheira.
Fonte: UOL.
Originally posted 2015-12-07 11:42:32.