Quando Caírem os Véus

Sidney Fernandes

Mas quando se converterem ao Senhor, então o véu se tirará.

Paulo

Como saber como é um país antes de visitá-lo? Perguntando aos seus moradores, parece óbvio. E quando esse país se chama morte? Ainda é óbvio?

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Um espírito dementado, que lembrava antigo fidalgo, entrou no recinto. Parecia ter sido arrancado das entranhas de região escura e viscosa, tamanha a repugnância que suas nauseabundas emanações causavam.

Entidades sofredoras, que ali se acotovelavam, abriram espaço, em visíveis demonstrações de asco diante daquela figura que parecia ter emergido de algum lençol de lama.

Enquanto a maioria dos presentes, embora infelizes e sofredores, tinham suas expressões amenizadas por sinais de arrependimento, fé, humildade e esperança, a face de José Maria era puro endurecimento, revolta, frieza e astúcia. Trazia em sua mão direita um chicote, que tentava estalar, ao mesmo tempo em que proferia ruidosas exclamações:

— Quem me fez chegar até aqui contra a minha vontade? Onde estão os abutres que me devoraram os olhos? Cativos, são cativos, senhores são senhores. Aos fujões e criminosos imporei cinco troncos de suplício, para refazer a tranquilidade.

José Maria fora fazendeiro desumano que desencarnara no século XVIII, mas ainda conservava a mente estagnada no egoísmo. Odiava os trabalhadores que fugiam. Quando conseguia recuperá-los, queimava-lhes os olhos, reduzindo-os à cegueira, como advertência às senzalas. Instalou o terror em derredor de seus passos e conseguiu fama e riqueza.

Quando morreu, encontrou desafetos como temíveis perseguidores. Muitas vítimas de alma branda haviam desculpado as ofensas, mas outras não o perdoaram, tornaram-se vingadores e lhe impuseram grande pavor.

Agora estava vivendo entre o desespero e o remorso, em função das flagelações que impusera aos escravos. Os desequilíbrios de seu corpo perispiritual reduziram-no a extrema cegueira. Entretanto, mesmo preso por suas vítimas de outrora e vencido, ainda se mantinha rude e áspero.

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Na codificação da Doutrina Espírita, particularmente na elaboração do livro O Céu e o Inferno, Allan Kardec interrogou milhares de espíritos, que foram seguidos desde suas vidas na Terra até o momento em que desencarnaram, buscando saber quais foram as alterações que neles ocorreram quando chegaram ao país desconhecido.

Dados foram registrados e catalogados, de pessoas de todas as classes e posições sociais, acompanhadas passo a passo na vida além-túmulo, para observação das mudanças que nelas se operaram.

Concluiu que os sofrimentos sempre guardavam relação com a vida que levaram, quando encarnados, cujas consequências experimentavam após o desencarne.

A outra vida pode ser fonte de indescritível ventura, para os que seguiram o bom caminho. Os que sofrem — afirma Allan Kardec — somente podem se queixar de si mesmos, quer no outro mundo, quer neste.

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José Maria, personagem de André Luiz, é um desses milhares de espíritos cuja trajetória foi acompanhada pela literatura espírita. Os véus que o cobriam não foram tirados, quando voltou à espiritualidade.

Emmanuel nos ensina que vigorosas inteligências podem ter dolorosas surpresas ao retornarem à vida maior, sentindo-se sob véus espessos. Falta-lhes a transformação para o bem, para que sintam efetivamente a vida eterna com o Senhor e se libertem dos véus pesados que lhes obscurecem o coração e o entendimento.

De outra parte, espíritos que vivem as leis sublimes, que se afeiçoam ao trabalho, à elevação e ao aprimoramento, passam por obstáculos como passam as nuvens.

Esses, continua ensinando Emmanuel, amam a responsabilidade, não se prendem à posse, dirigem subordinados com devotamento e não se deixam encantar pelo desejo de domínio. São criaturas abençoadas, que servem sem escravizar-se e permanecem atentos à sementeira sem inquietar-se com a colheita, pois esta pertence ao Senhor, que oferece o campo, a planta, o sol, a água e o vento.

Bem-aventurado o homem que segue vida afora em espírito. Para ele a morte aflitiva não é mais que alvorada de novo dia, sublime transformação e alegre despertar.

Emmanuel

REFERÊNCIAS

Nos Domínios da Mediunidade, André Luiz; Vinha de Luz e Pão Nosso, Emmanuel; e O Livro dos Espíritos, Allan Kardec.

Sidney Fernandes (1948@uol.com.br) nasceu em Bauru, em 1948. Gerente do Banco do Brasil e Empresário, hoje está aposentado e se dedica integralmente à veiculação do Espiritismo. Participou ativamente da Mocidade Espírita até integrar-se ao Centro Espírita Amor e Caridade de Bauru (SP). Escritor e orador profere palestras em várias cidades brasileiras. Veja página deste Autor