Espiritismo Sem Espíritos
- Colunas
- 16/02/2020
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Sidney Fernandes – 1948@uol.com.br
Um raio teria feito menos estragos do que a proposição apresentada por Haroldo, participante de uma das reuniões mediúnicas, à diretoria do Grupo Espírita Emmanuel, com a seguinte argumentação:
— Há dez anos acompanho as comunicações dos espíritos. Não me ensinaram, durante todo esse tempo, nenhuma verdade nova. Não mais darei ouvidos às comunicações, que proscrevi da minha vida espírita.
Ricardo, um dos diretores, reagiu àquela postura, nominando-a de ingratidão perante os benfeitores espirituais:
— O caro irmão está completamente equivocado em suas observações. Sem as comunicações dos espíritos não haveria Espiritismo — disse ele, repetindo textualmente palavras do Codificador.
Não adiantaram, todavia, aquelas manifestações de indignação, e outras, não tão educadas e mansas como as já emitidas. Haroldo, irredutível, levantou-se e retirou-se do recinto.
Ricardo estava refletindo sobre aquela inusitada situação, quando o velho Anacleto se aproximou.
— Estou pensando o mesmo que você, Ricardo. Para mim Haroldo está influenciado por alguma corrente espiritual dissidente, que quer bagunçar nossa casa espírita.
— Se for isso — falou sorrindo Ricardo —, essas ideias malucas já devem estar sendo coibidas pelos mentores do centro. Com certeza já tomaram alguma providência de que ainda não temos conhecimento.
Em menos de um mês surgiram algumas novidades, aparentemente sem ligação com os acontecimentos. Um dos grupos mediúnicos da casa espírita estava com um problema. Extensa comunicação psicográfica havia sido recebida por Mafalda, uma das médiuns, sem que se atinasse quem seria seu destinatário. A psicógrafa, ansiosa para entregar a carta que havia recebido mediunicamente, procurou Ricardo e disse:
— Tenho intuição de que a carta foi destinada ao nosso irmão Haroldo.
Imediatamente Ricardo ligou os pontos. Conhecia um pouco da vida particular de Haroldo e sabia que ele era neto de italianos e espanhóis. Não quis ser indiscreto com relação ao conteúdo da carta, para saber mais detalhes, e terminou a conversa aconselhando a médium a conversar diretamente com ele, prevenindo-a de suas recentes resoluções.
— Haroldo, aqui é a Mafalda, do centro espírita.
— Olá Mafalda, o que manda? — respondeu Haroldo, educadamente.
— Seu avô era espanhol?— Sim, por quê?— Seu sobrenome começava com a letra “e”?
— Estranho — pensou Haroldo. Não existe alma viva que saiba que meu avô paterno havia assumido, por questões de homonímia, o sobrenome de sua avó, que realmente começava com aquela letra.
A pedido de Mafalda e com a concordância de Haroldo, marcou conversa que seria acompanhada por Ricardo e Anacleto. Ao entrarem na sala, ambos estranharam que Haroldo estivesse visivelmente emocionado. — Sem tirar nem pôr — disse Haroldo aos dois amigos que entravam —, esta carta é do meu avô Toninho. Fala que meu pai pede desculpas pelas estripulias que aprontou comigo, quando estava vivo…. Descreve a alegria de minha mãe com minhas palestras… Como vocês sabem, sou viúvo, e estava pensando em me unir a uma senhora, mais nova que eu. Ninguém sabia disso. — E ali meu avô diz, com muita energia, no seu portunhol arrastado: Encontraste, é ela a mulher de sua vida! — contou Haroldo, entre uma lágrima e outra. — E a pá de cal, para colocar fim às minhas incredulidades, está aqui, no final da comunicação. Meu avô puxa minhas orelhas, vigorosamente, por ter duvidado e me afastado das reuniões mediúnicas.
Ricardo e Anacleto se entreolharam, mas não abriram a boca, para não estragar a reconversão de Haroldo. Na noite seguinte, sem avisar ninguém, lá estava o incrédulo Haroldo, de volta ao grupo mediúnico que havia abandonado.
Lembra-nos Allan Kardec, na Revista Espírita, que as comunicações dos espíritos fundaram o Espiritismo. Repeli-las significaria tirar-lhe o alicerce e tal não pode ser o pensamento de espíritas sérios e devotados.
Fontes consultadas: Allan Kardec em Revista, de Maroísa Baio e Revista Espírita de Abril de 1866, de Allan Kardec.